Ele não podia ver comida. Seu primeiro choro não foi para avisar que havia chegado ao mundo. Foi para anunciar a todos os presentes que ele estava com fome. A medicina, e a mãe dele, nunca tinham visto um bebê tão faminto logo nos primeiros segundos de vida. Antes mesmo de cortar o cordão umbilical, já tinha feito a primeira mamada e chocado o hospital inteiro.
Cresceu um pouco. Normal pra quem comia tudo que via, e não via, pela frente. Com um ano já tinha experimentado todo tipo de papinha, fruta, aveia, mingau e — não contem pra ninguém da família — um dedinho molhado de cerveja do tio Carlos. O apetite voraz do garoto era motivo de orgulho para suas avós, e para todas as outras avós do clube ilegal de carteado da casa de repouso.
O som do sinal nos avisa que agora ele já está na escola. Como qualquer garoto de sua idade, ele gostava mesmo de jogar futebol. Infelizmente ele não tinha lá muita visão de jogo. Passava mais tempo na fila de espera pelo próximo jogo do que em quadra. Ele não ligava. Até porque a fila desembocava na cantina da escola. Ele era um glutão, mas era muito educado. Era o rei das tias do lanche. Elas já sabiam de cor o que, e o quanto, ele comeria em cada dia da semana.
Cresceu um pouco mais. O apetite começou a mudar. Os hormônios são os culpados com certeza. Ele era tão bom de papo quanto de garfo. Mas nunca conseguia ver se estava caindo nas graças das garotas ou na armadilha da friendzone. Seu pequeno problema era saber quando dar o próximo passo. Seu grande problema era saber quando ele poderia comer o que sobrava no prato de suas pretendentes.
A faculdade de gastronomia era o destino certo. Só ele não viu. Resolveu fazer publicidade. Foi bem ao longo do curso, arrumou um estágio cedo, começou a usar camisa com estampa engraçadinha, ganhou prêmios, virou noites, pediu todos os deliveries do bairro — duas vezes — e sabia indicar todo tipo de gastronomia para os colegas de trabalho. Só não sabia há quanto tempo não via a namorada, os pais e o cachorro. Até ele conseguiu ver que aquilo não estava fazendo bem.
Tirou um ano sabático. Foi sentir a energia do leste europeu, leste asiático e da zona leste. Deu certo. Descobriu o que dava mais sentido aos seus sentidos: a comida. Ele não sabia bem o porquê. E olha que já tinha comido de tudo. Ou quase tudo. Mas nunca tinha parado pra pensar nisso. Tudo fazia sentido de novo. Cada garfada era um sopro de vida. Não havia endocrinologista, cardiologista ou opiniãoalheiagista que lhe fizesse parar.
Na verdade, havia sim. O narrador. Até aqui esta história agrada o paladar da grande maioria dos leitores. Daqui pra frente, pode ser meio indigesta para alguns. Por isso, tal qual num restaurante decente, o leitor poderá escolher. Sabendo, é claro, que isso impactará diretamente em sua digestão.
Nossa primeira opção — ou parágrafo a seguir — é uma sobremesa clássica, o típico final feliz de qualquer história, ou refeição. A segunda opção — ou dois parágrafos à frente — é um prato que o chef caprichou e ousou um pouco mais, mas que pode agradar muito, ou causar um mal estar danado. Não vai ter nenhum garçom perguntando o que o leitor vai querer, mas os parágrafos serão servidos a seguir.
O final feliz pra quem come de tudo é comer, literalmente, tudo. Não havia mais nada no mundo que ele não tivesse degustado, provado ou experimentado. Ele realmente não podia ver comida, mas sentia a comida. Os cheiros, as texturas, os sons, tudo que rodeava uma refeição permitia que ele materializasse o que não conseguia enxergar. Viveu feliz e guloso até os 100 anos. Dizia que o segredo era a tacinha de licor digestivo após as refeições. Em sua lápide podemos ler “cegos também podem ter o olho maior que a barriga”.
O final nada feliz desta história, não se enche a boca para contar. E muito menos se conta de boca cheia. Se você já leu o final feliz, sacou que nosso personagem era cego. Se não leu, agora já sabe. Final amargo não tem rodeios. Nem sorrisos. Ele pensou que aquela seria a primeira refeição do dia. Mal sabia que seria a última. Ele comeu como sempre, mas diferente de todas as outras vezes, não percebeu que tinha caroço naquele angu. Até hoje não se tem maiores explicações da polícia, vizinhos, ou da ex-mulher que ficou com toda sua fortuna. Mas sabe-se que ele foi envenenado. Em sua lápide não podemos ler nada. A piranha cremou o ex-marido, se confundiu com os potes e acabou usando ele de tempero num miojo sem vergonha.